quarta-feira, 14 de julho de 2010

oração de floresta e rio e outros poemas

.


oração de floresta e rio
e
outros poemas


marcos quinan








2003


capa
rones lima

fotografias
marcos quinan e roseli naves

revisão
conceição elarrat




Quinan, Marcos.oração de floresta e rio e outros poemas. Brasília: R. Vinas Editora Projecto Editorial, 2003186p. ISBN CDD 869.91. Poesia brasileira. I. Título








para roseli
definitivo amor










agradeço a
celso viáfora, rones lima, reivaldo vinas e especialmente a conceição elarrat




nas contas
do rosário de versos
rezo pela vida

prece de solidão
e de procura
cantando
o sertão da alma

meu jeito de oração


mq











“olhe somente a vida dos meus versos,
que a vida do meu verso - é a minha vida.”
vinicius de moraes









oração de floresta e rio

canto de abertura (canto da terra)



a floresta range
num rio dentro de nós
o rio ruge
na floresta aqui em nós
orai por eles
orai por nós

sons de lendas
visagens que ardem
rogai por nós

mãos postas em desafio
vento indo
rodopiando as direções
da hora norte
rogai por ele
zelai por nós

corpos em eito de águas
impregnados
escorrendo
anchos
esquecidos
orai por eles
rogai por nós

alma de floresta
esfarrapada pungindo
orai por ela
rogai por nós

alma de rio
se amiudando
sumindo
orai por ele
rogai por ele
zelai por nós

afluentes homens rios
calados passando e
vendo passar

leito lodo ruindo
homem vindo
da aridez de mãos tardias
e intenções vazias
bisbilhotando
escolhendo
vindo
vindo

a floresta range
num rio
o rio ruge
na floresta
urge
urge

juntai os homens rios
das margens e matos
com seus calos
e terçados

juntai seus afluentes
em estridência de águas
suas chuvas
em emoção de pranto

juntai sementes em
húmus férteis
maternais

juntai seus habitantes
mais primitivos
sabedores dos seus
mistérios
seres rudes
mas racionais
predadores de mãos
limpas e férteis

juntai floresta e rio
suas entidades
suas lendas em labaredas
o espírito dos seus
mortos
que vivos
estão impregnados
nas suas águas solidárias
no seu verde calado

e quando todos juntos
estiverem na oração maior
que é reunir
somente um grito será dado
escolhendo com as entranhas

o que se quer daqui

°°°


canto da alma da floresta


resulto em harmonia
no corpo esparramado
esfarrapando
tocado pelo sol
possibilitando ainda
nascentes
vidas

resulto da esperança
de habitantes
em convivência
de chagas lacerantes
que cubro toda noite
com uma colcha de estrelas

°°°

canto da alma do rio


do ventre
que venho
o ventre que tenho
traz saudade
da nascente
mas em abraços
recebo contente
todas as águas
que correm em mim
e toda a ferida
que purga por dentro
quando rebento
na angústia de desaguar
se cura no sal
que me é sina
de sempre encontrar

°°°


canto dos afluentes


seiva silenciosa
matando arredores
deixado nascer
o verde e o maduro
conduzindo o homem rio
servindo-lhe mesa farta
ensinando aonde ir

seiva silenciosa
canto dolente
afluentes
que depois viram braços
entrando
alimentados
e alimentando
fertilidade

vão indo
convivendo
semeando
seiva e silêncios
com seus gritos

°°°


canto do vento


tece os espaços
leva no ar
o bico dos pássaros
canta
mensageiro de
sementes
em vôo livre
escolhendo
e se soltando
em liberdade
de pé de vento
e rodopio
misturado em desalinho
nas copas
nos caminhos
desfazendo pontaria
espalhando gestos
e intenções de assobio
rindo

°°°


canto das margens


sou lugar de chegar
e partir

sou paralela
ponto por ponto

às vezes, me aproximo
e quase beijo
receosa, me afasto
mas desejo

sou assim
indecisa por inteiro
nunca me afasto tanto
da outra margem
de mim

todos me querem
desde o olho d´água
pensando que me divide
até o outro lado
que tanto insiste

mas sempre faço convite
quando espraio
em sedução

sou também estrada, limitação
corro em águas
com a alma dentro do chão

°°°


canto da chuva


sou inesperada
e gosto assim
caio ou me espalho
onde quero

às vezes, sou mansa
e acaricio

noutras, me desalinho
inundo

vivo no ar
mas no fundo
gosto mesmo
de dar de beber
de embriagar
encher os rios
escorrer
fertilizar

°°°

canto da semente


broto pelos cantos
corro em bicos e corpos
voando

sei nadar
sonho em frutos
e viro galhos
entrelaço
crio espaços
quero o sol

sou o pólen no labor
em mistura
de flor

semeada
dou-me inteira
sustento tua boca
abrigo-te sedutora

quando me busco
sozinha na terra
luto bravamente
pra ser de verdade
semente

°°°


canto dos animais


no rasto
no risco d´água
na intenção de céu
em invisível caminhar
também semeamos
nossos universos
somos muitos
entre floresta e rio
em palmos
e gotas
no equilíbrio
de nós mesmos

°°°


canto dos corpos


sou bainha que recebe
a lâmina fria do terçado
de terça a terça
de todas as semanas da lida
vivo
espetado na exuberância
que a simplicidade não imita
sei andar
navego
e tenho liberdade dos gestos
de conhecer até a próxima curva

sou negado em generosidade
de peixes e frutos
no desmazelo de quem me aparta

sou também a conformação
inconformada em mim mesma
imito a floresta e o rio
crio histórias pra esquecer
lembrando
quem posso ser, sendo

°°°


canto das lendas


caminho
das histórias
de boca a ouvido
passando
de ido a indo
pra memória
de quem virá

verdadeiro
relato que é
possível contar
na palavra que
engole os rios
e faz a floresta
sonhar

°°°


canto dos mortos


zelai por nós
em nossa hora futura

vós que sois o húmus
que esterca floresta e rio
com a vida morta
de vossos corpos
em brio e semente

vós que com o espírito
em prantos
quer por essa terra
tão pouco e tanto

vós, com vossa voz
ancestral
nos ensina a cantar
nossos vivos

vós que fostes
resplendor
possibilite essa referência
ensina-nos a rezar
por todos nós

°°°


canto das mãos


santas que no remar
gestos de oração
rogam por nós

mãos que pedem
padecidas
que manuseiam
e se doam
que abraçam em colheita
mãos que ferem
fenecendo
e que benzem
cortam
e são cortadas
que protegem
e que agridem

mãos postas
em carinho
ou em calos
na noite do teu corpo

°°°


grito dos reunidos


gritamos a hora norte

da harmonia
possibilitar

da convivência
acrescentar

das feridas
cicatrizar

das cicatrizes
só lembrar

gritamos na hora norte
escolher
limitação

conduzir
fertilidade

sustentar
nossa busca

e buscar
nosso destino

gritamos em hora norte
que venham
somar e multiplicar
a nossa generosidade

gritamos a hora norte
na história
do nosso canto

o sonho
também de nossos mortos
que trazemos
por entre as mãos

°°°


canto final (canto da terra)


nossos corpos
puros na impureza
de reinar
em floresta e rio

nossas mãos
vento e chuva
em floresta e rio

sementes
de afluentes
nas margens
reunidos

com quem vive
e vem viver
com quem morto
vem morrer

com quem cantamos
e canta nesse grito

o que se quer daqui

°°°





outros poemas



palavras
para sandra maria quinan


quantas cabem no instante do olhar
e me deixam ruir
quantas ardem nos silêncios
e me fazem puir
quantas dormem dentro de mim
ensinando sonhar

desamarrar as palavras
soltá-las pela boca
e nas mãos embriagadas
por precipícios e nascentes

desamarrar as palavras
soltá-las por entre
o som da voz
misturadas ao cheiro da pele

tantas estão nos meus sentidos
quantas compõem minha consciência?
todas escorrem da emoção

são palavras em silêncio
quando estão nos porquês
quando sabem do amor
parecendo não saber

°°°


barra do são miguel


no despertar da manhã
vem
verde o mar
vem vento
recorta o dia
em gestos de litoral

luzindo o calor do sol
que respeita a sombra
nasce em alto mar
dorme noutro lugar

deixa a noite limpa
nas pontas de cinco estrelas
que tem sina de apontar

no rumo
é o lugar
onde adensa a caatinga
palmo a palmo de sertão
o que secando foi
o que secado está

retido só a beleza
de verde esperar brotar
ou a palavra
algum homem honrar

o cruzeiro do sul
na mesma noite limpa
que sertão navegará?
que estrela aponta o rumo?
se caminhos ali não há
são só homens desistindo
sem em que acreditar

e na soma das manhãs
só há homens sozinhos
no sol quente acurado
nem há sombras a respeitar

°°°


sem promessas


a liberdade
esteve entre nós
na madrugada

casual
perfumou nossas bocas
e muitos gestos

sensual
guiou nossas mãos
lambendo sedenta
cada instante

pulsando
instilou seu corpo no meu
e o meu no seu

sem promessas
nos pertenceu
e foi embora
deixando na manhã da realidade
um sabor de volúpia
recendendo de nossas roupas
e um cheiro de amor
calando nossas verdades

°°°


verdade quanta
para marcelo quinan

verdade quanta
sermos juntos
um ser só

prova nosso cheiro
que ainda é o mesmo
e nenhum tempo
conseguiu desbotar

prova nossas bocas juntas
que nossos seres
separados
não podem controlar

nossa verdade
afirmada sempre
no medo
de sermos juntos
um ser só

verdade quanta
essa mentira de
estarmos sós

°°°


ventre cabano


tudo por fazer
na terra nova
encontrada aqui

tudo por entender
do braço índio
nascido aqui

vida viva
de vencidos e vencedores
vivendo livre
sobejando aqui

encontro das culpas seculares
aprendidas de joelhos
e mãos postas em armas
com a vida viva nascida aqui

contrição e a rubra mordaça
desnudada nas batinas

entalhes lúbricos
resultados sem lavor
traço negro trazido à força
para empenho e labor

vida viva
mutilada da altivez
restada nos porões
pútridos do estanco

manumissão de libertos
juntos
calados e misturados
às conquistas que o deszelo
cobriu com hipocrisia
sobrepondo lenitivo à vida

do braço índio cativado aqui
do braço negro exilado aqui
do braço branco renascendo aqui

verdade mestiça de dores
esparramadas em subserviência
findando no descaso com a terra
que se fingiu descobrir

o gentio se misturando
mesmo curvado
quimeras prenunciando salvação
imitando de mão em mão
um deus
um rei

mas sonhos podem ter
as mãos quando ganham
os espertos com seus grilhões

mas sonhos podem ter
as mãos quando tocam
a verdade nos sonhos
de outras mãos e somam
a escolha da liberdade
de mão em mão

óbolos de fel que põem
solenemente acima
falsos e vazios
circunspectos sujigando

em leis que moem
e subtraem apenas
estugando o ódio

nas entranhas
da morte em cal
sangue e fezes
embriagados na loucura
dos boticários
punindo em vão
segregando o respeito

dor
adornada de dor
adonando todos
desencadeando vala comum
e rasa do penacova

valimento dos restos
de menos valia
rompâncias e sujeição
assomados nas ruas

iniquidade torturando
calma e silêncios
no ecôo da concertina
no sibilo das balas

polução
na calma da noite
na soberba das alforrias

cordura com os atos
exéquias pequenas e tristes
nos arrabaldes do sonho
mourejados
só com a vida

cabedal que se doa
com zelo, sem datação

ressôo de bombardino
sibilo das ordens
entrando pelas gelosias
das janelas abandonadas
pelos senhores intolerantes

sobrecarga da ira

no gentio apartado
vagando erradio
pelos mocambos
deixando rastos
imperceptíveis
nos bivaques e caminhos

no negro amolegado
pela chibata
homiziado nos quilombolas

no branco tocado
pela liberdade sem laços
rompendo desígnio

detração pelos adros
e palácios como vômito
no linóleo impregnado

o esgar dos brasões
enrijecendo a verdade
pelas ruas e caminhos
espalhando a vontade
o gesto
lesto
esmiuçando os arredores
até o suburgo na beira do rio

onde folga homens
embaixo d´um pau copado
deslindando seu relato
parte por parte
para entender melhor
o dédalo das leis promulgadas

postergando e emudecendo
o ventre tenro
onde a liberdade
queria nascer


°°°


janeiro de 2000
para joãozinho gomes


como avisei
esquartejei teus versos e os meus
tirei dos meus a mentira das palavras
que a borracha comeu
mas os teus
esquartejados e mesmo assim vivos
e pulsando ficaram
por dentro das folhas amassadas
escorrendo pelas dobras
a procura de notas na canção
foi o que bastou
saí e espalhei todos pela cidade
um pedaço em cada canto
e te juro meu poeta
quando terminei pude ouvir
pelas bocas das esquinas
cada palavra deles
até a esquina da rua do ditador
com a rua do general
gritavam pelas “chamas de liberdade”
no oportunismo peculiar delas
ainda no caminho de volta ouvi
da boca de um bêbado
vamos tomar a ultima na “nata da via Láctea”
assim a cidade matou a saudade
do poeta ausente
e eu carrasco dos teus versos
saboreei contente a noite
rezando a oração leiga concluída
com parte esquartejada dos teus versos
e o que havia de verdade nos meus


°°°


belo monte
para antônio vicente mendes maciel


e teve um tempo
mudado em sangue
fogo e morte
que se rezava
a igualdade
a liberdade
na lealdade
da mesma oração

e teve um tempo
calando o sino
das horas vivas
que consagrava
o trabalho
e a lealdade
na igualdade
de sermos irmãos

e teve um tempo
de fé sertaneja
que a esperança
igualada
à liberdade
davam-se as mãos
foi na caatinga
lugar de sertãobrasileiro
assim, emendado
por inteiro
mudado em farsa
onde só carcaças pareceu
restar no chão

mas há no tempo
irreverente
sobrevindo
a semente
do pensamento
sempre presente
daqueles homens
brasileiros e sãos

°°°


tua chegada
para roseli de assunção naves


o tempo me enganou
vieste depois
de todo o abandono

trouxeste na pele
o cheiro das manhãs
no calor do teu corpo
a sensibilidade da noite
aumentou e me cobriu
profundamente
como manto invisível

trouxeste nos lábios
o gosto das horas proibidas
teu amor ardendo
na ponta dos gestos
e duas esmeraldas acesas
no jeito do olhar

°°°


1971


deixe-se envolver
acorde desse torpor
mas não defina nada, viva
separe-se das coisas
viva a incerteza
de cada instante
questione-os
também em função
de sua ressaca semanal
deixe que lhe digam
todas as verdades
mas não se envolva nelas
não acredite em ideologias
nem em falsas ideologias
ideal é ser você mesmo
liberdade é palavra bonita
mas não a pronuncie
vivê-la é o bastante
abandone-se nas situações
de vez em quando
do lirismo à hipocrisia
e até a vadiagem
apaixone-se por uma mulher
uma árvore, um comercial
seja tudo que puder
fale pouco
escute (com um pouco de atenção) muito
não reestruture
nem reformule nada
tenha sempre a mão
uma garrafa cheia
ou um cigarro
pratique um vício, se quiser
olhe sempre pra frente
relacione-se com pessoas
de todas as idades
tamanhos, credo, cor
não seja caridoso, seja bom
e mais o que quiser, se quiser

não se defina nunca

°°°


encontro
para paulo césar pinheiro


a madrugada entregou
a dor das palavras
ao perfume da
fumaça dos cigarros

as notas, braços dados
com a alegria das palavras,
dançou lundus
catiras e marambirés

as visagens abençoadas
na alma das palavras
viram velhos amigos
em rostos novos

dois brasileiros
e seus tesouros
bebendo lucidez
e loucura na
madrugada das
palavras que sentem

°°°


toada inacabada
para joãozinho gomes


estavam lá
enrouquecidos e silenciosos
na volúpia empoeirada
das palavras guardadas
ainda ardendo em paixão
foi numa manhã de domingo
quando percebi
escorrendo pelo canto da gaveta
(e seus versos escorrem sempre por dentro da gente, pelas dobras dos papéis e pelas gavetas)
eram palavras esmaecidas
enlouquecidas mas vivas
querendo sair, voar
fruta madura, rachada
que sangrava quando as tomei nas mãos
e, com a agulha da saudade,
suturei com poucas linhas de palavras
e meus versos de aprendiz
a costura ficou boa
e cuidei de embalar
com simplicidade
na intuição de notas meninas
para quem nos amasse revisar
a cicatriz ficou tão pouca
depois da revisão,
que um cantador já afamado
a canta com uma só mão
e com todo coração
assim fiquei satisfeito
com a toada inacabada ardendo
pronta para as estradas
e de novo fui dormir contente
com minhas mãos que esquartejam
e costuram coloridas de cura

°°°


vais durando


vais durando em mim sempre
e sempre durarás em mim
pois tenho zelo em pertencer-te
e sinto a cada quadra do tempo
a doce saudade de ter-te
o tempo curva meu corpo
e vais durando,
apura minha sensibilidade
e vais durando
porque sempre
é quando
estás em mim sempre

°°°


desafio
para fernando carvalho


pensas que não há outros desafios
ao lançar-te ao rio
pensas que não há muitos desafios
quando navegar

se ao celebrar nossa afeição
olharmos desde
o olho d´água
que antecede o rio
e seus afluentes
que o acompanham ao mar
são como a amizade
que se quer cantar

inicia os rios
recebendo abraços de braços
pra se acaudalar
e em mar bravio
sina de olho d´água
sina de ser rio
é saber levar
dentro o amigo
quando navegar

°°°


santas mãos
para neusa garcia


da terra mãe
o barro que as mãos tangem
em uníssono com o coração

é quando sou barro
quando sou mãos

francisco, maria
pais de mãos

barros são arcanjos, genaros
antônios e joãos
fátimas, lourdes, auxiliadoras
luzias, mestras alegrias

nascidas no barro
também pais das minhas mãos

°°°


feição da esperança
para thiago de melo


teus versos salvaram
um dia, nossas almas
eram dias de tudo em vão
muitas sombras nos caminhos
muitos sonhos no portão

havia a desesperança
sobrando em nossas mãos
havia cortes de bala
purgando cada canção

teus versos salvaram,
um dia, nossas almas
eram dias de escuridão
só vergalho nas esquinas
só demônios no porão

sabias da esperança
sementando tuas mãos
sabias da igualdade
buscando cada refrão

conduzindo no candeio
da esperança a feição
procurando a liberdade
na ponta da escuridão

°°°


jenipabu
para luís da câmara cascudo


sou junto
cabo e ponta
vara de varejar
fundo de rios
grandes e pequenos
liga de rumos
cardeais
vara de varejar
cabo e ponta
tocando o fundo
da luz de luís
e neneu
lugar de nascer
e nasci
no braço dos
rios grandes
herança
e margens
de lá e cá

°°°


brinde
para angélica torres


bebo saudade
nas tuas mãos
que lavram
a angústia das palavras
com tanta lucidez

bebo muita saudade
nelas duas
sedentas e generosas
negadas na severidade
do tempo
em desencontros

irmã do mesmo
encanto
barro e versos
estorcidos
no eito da procura

rastos de nossa
carne e alma
apodrecendo
a todo momento
mas parindo
dia após dia
a dor da poesia

brindo ao nosso encontro
amiga bem-vinda
com a aguardente
abraço do braço
da minha emoção
e as mãos cristalinas
e inconsoladas
dos poetas sem medo

°°°


embolada
para jackson do pandeiro


zé, que som de pandeiro
requebrou na madrugada
zé que som de pandeiro
destilou da alforjada

i, é...? i, foi...? olha o zambê
candongo da mourão
andando rumo de noite
acordando a alvorada
apareceu roda de coco
na serra da borborema

i, é...? i, foi...? dança de bangulê
florando num par de mãos
umbigada contra o açoite
ritmado do sertão

i, é!... e foi assim zé
som de pandeiro
embolou a embolada

i, foi...i, é...
e foi assim, sim zé
som de pandeiro
embolou a embolada

°°°


maria de nazaré


um rio caminha o caminho
unindo tantos e todos
até os sem fé

são águas, lavram carinho
no remanso de cada mão
contritas à margem da lida
conduzem sua maria
santa virgem de nazaré

emoção buscando o destino
e a bênção contra o daninho
da gente que parece, e é
um rio que cumpre o caminho
deixando nos rastos, a fé
do povo da nossa terra
na virgem de nazaré

°°°


sina de ser tão, sertão


posto o horizonte
no dia,
linha estendida
na imensidão,
caminho
de tropas
passando

vento balança
copa e tronco
ensinando dançar,
ninho de juriti,
folha nova
despertando,
cacho, coco,
capivaras, bem-te-vis
chuva fina
na terra fértil
fecunda a raiz
lançada ali

passeia o sol
no compasso
traça a luz,
projeta horas
ser tão, sertão
nos rastos
das boiadas
seguindo

lusco-fusco,
vaga-lumes
solidão
noite que a lua
segue em compasso,
dança

ermo de cerrado,
sinfonia,
solo de pirilampos
escutado sob
o silêncio
das estrelas

o tempo
são marcos
de ser tão, sertão,
na terra
onde folhas viram asas
do seu tronco buriti

°°°


voz do andirá
para thiago de melo


em ti algo de melodia
denso de simplicidade
espraia em palavras
o poder da canção
anuncia a esperança
no mormaço dos quintais
rema rimas no caminho
sem sina de se calar
sonha dias e destinos
sonha rios, sonha mar

em ti algo de melodia
ressoa pela floresta
são gritos de liberdade
na aurora ribeirinha
afiando o corte da voz
que, rente ao chão,
luta contra o escuro
das indiferenças
e desigualdades
com talhos de esperança
e gestos doloridos de amor

°°°


canto de bangüê


paresque i’ele
pissuía curuba
iu’oto caxingava
tucavum caracaxá
tambur punga
i ganzá...

c’us ói de jetatura
nhanga vi’u buzugo
lundu d’ele suzinho
gingando inroda
na patra dutro mundo

°°°


irmã
para irmã nely de souza capuzzo


pari tantos da minha virgindade
criei os possíveis
amamentei com minhas mãos
os mais fracos
filhos de tanta ausência
embriagada, todas as noites
de compaixão,
vaguei por ruas
recolhendo as crias
que punham no meu ventre
por entre meus seios secos
ouvi gemidos de gozo
lágrimas, gritando nas sarjetas
que a escuridão tirava dos olhos
escorrendo em farrapos

fui mãe e pai, obstinada vi vingar
excluídos, nascidos
onde não deveriam nascer
minha aliança de virgem
sangrou todos os dias
quando o pedreiro lacrou,
na campa, minhas roupas de pó,
virei vento e soprei
os galhos em volta
nua, virgem
mãe, filha e irmã
da miséria que também
me gerou

°°°


grito


é teu
o grito escondido
dentro da alma
e podes
lançá-lo no ar

pressuponho
ser de paixão
e ternura
se espalhando

pressuponho
ser de solidão
e procura
ecoando

é teu
o grito engasgado
na alma
e podes
lançá-lo no ar
é fácil
assim
feche os olhos

é como voar

°°°


teu homem
para camilo delduque


encontrei a sala
em penumbra
e nele a solidão
instalada na perplexidade
quando o abracei
ele chorou nos meus braços
e molhou a face da dor
que bebia junto, nua
os primeiros copos
da ausência

era teu homem maria
que a morte lambia

°°°


peregrinos
para albery júnior


peregrinos
juntados na emoção
que um canto chão
mistura os hemisférios
na corda rouca
de um velho violão
na voz que tira
das palavras os grilhões

lembrando todas as manhãs
que fora nas latitudes
a hora certa de chegar
de não ir
nas longitudes que feriu
cordas em solidão
nenhum caminho foi em vão
é em vão

a geografia das lágrimas caindo
respinga cores
nas pegadas
dos peregrinos
ao redor da manhã

°°°


rosavento


rosavento do norte
de todos os ventos

traga todas as flores do campo
e os vaga-lumes
leve as marcas do tempo
e os meus queixumes
deixe só o entardecer

rosavento dos ventos
de todos os nortes

permita todos os passos
proteja todos os vôos
abençoe o chegar
dê ao suor recompensa
ao amor galhardia
e dê sonhos pra sonhar

rosavento de todos os nortes
rosavento de todos os ventos

°°°


duas lágrimas
para nilson chaves


impotência de todos os atos
de todos os credos
emoção esmagada pelo inexorável
transformando a dor
toda a dor
em apenas duas lágrimas

o sangue lateja nos olhos
o coração parado está
a desesperança ronda
duas lágrimas
diferentes de todas
que os olhos já derramaram

são aflição
impotência e consumição
mas desesperança não

°°°


chamas


cheiro de aurora
na pele
que a boca
quer beijar
e clama

o desejo fala
se cala
e clama

as mãos tocam
e se entregam ao corpo
a pele se veste
de mãos em chamas

o desejo rodopia
não se contenta
explode
na madrugada calada
e na boca que engole
o silêncio em chamas

°°°


por causa da viola


não se adisculpa não
meu amigo cantadô

ôce bem sabe que mora
num coração perdoadô

se adisponha no sempre
desse peão servidô

nóis já plantamo a semente
agora é coiê as frôr

enquanto nóis dois vivente
se adisponha pur favô

e quando se um ausente
sua farta será dô

mas sempre fica a semente
desse um tar de amor

°°°


novo sempre


a consciência
dos elementos
refaz-se das rugas
começando
sempre em novo
todos os dias
formando
na pele da terra
seios de mãe
louca para amamentar
mas nossa boca
animal, racional
não entende o sinal
parece, nem sente
consciência não tem
de que não há
um final

°°°


outro fogo


dilacera meu reino
com seu traçado
de bainha carmesim

estua meu ventre
com feridas doloridas
que me desfigura
e arde em calor

mão do tempo
nas aleivosas
mãos do homem
nos alígeros
olhos do homem
que não me vê ferida
nem quando me descobre
viva, mas morrendo
nem quando
vive em mim
nem quando
morre em mim

°°°


vestígios no olhar


há nos teus braços
na precisão dos contornos
a pele da juventude
sem nenhuma palidez
e o maternal delatado
que olho com polidez

há nos teus braços
marcas de outros caminhos
que te laçaram com avidez
e vestígios de um amor
que o instinto quase desfez

há nos teus braços
todos os ângulos
dos gestos lânguidos
que têm o prazer

há nos teus braços
o sensual desenho
de sol passeando
no horizonte das tardes

há nos teus braços
um pedaço de mim
crucificado

há nos teus braços
solidão e intenções
reparando, sem reparar
o abraço do meu olhar

°°°


breganha


pareceu agora na minha lembrança
um caso do diabo que se assucedeu...
muitos ano atráis
lá nas bera do ri do braço
rosinha ruim dos peito
nem ia iscapá,
famia tudo avisado
a mãe, as irmã, as tia
puxava reza, fazia promessa
era uma consumição vê ela daquele jeito
benzedô num dava jeito,
dotô só balangava a cabeça
desacorsoado
i’eu no meu canto
me apegava com pai de todos e nada
foi aí que resovi chamá o dêmo
e fazê breganha
vida de rosinha prá cá
arma pecadora prá lá
foi como se o coisa ruim tivesse esperano,
de repente rosinha miora,
fica boa que os dotô
e benzedô num creditava
vinha de longe prá vê
i’eu no meu canto
isperano o rabudo cobrá o trato
numa tremedeira
nem durmino tava
e deu-se um tempo
desalembrei do beiçudo
que num vinha acertá
um dia tano tocano boiada
só animá pejado de brabeza
e muita pricisão de chegá
no relance
apareceu o vermelhão,
o ronca-quente
capeta no duro
pele carroquenta
e chifrão afiado

- vim te buscá
- agora num vô, tô cheio de sirviço
- trato é trato
- tem que isperá
- vou te levá
- agora num vô, tô ocupado
- ocê tratô tem que pagá
- pagá i’eu pago, mais tem que isperá

dipois de muita discussão
o gramulhão intestô
e bufando veio prá riba de mim
i’eu num devorteio
garrei o rabo dele e dei um nó
o bichão saiu pulando,
peidando e cagando fidido
era bosta do dêmo prá tudo que é lado
do carvueiro até a meia légua
ficou uma catinga só
no rasto do beiçudo
pulano cerca
da feita que o feioso nunca mais vortô
i’eu num temo a morte
pur sê coisa certa
mais arma minha na rezança do céu
vai parecê não

°°°


terra morena
para nazaré pereira


pendurei a floresta
na barra da saia
balancei os babados
no oiapoque e chuí

acendi o carvão
perfumado
com minha verdade
e no cós do rendado
levei tudo dali

bebi boca de rio
e fui pra paris
cantar minha herança
na voz que dança
de cor os brasis

siriá, siriou
reizado, rezou
moda, xote
xaxado, carimbó
e baião
danço samba de cuia
girando girando
espalhando as mãos
e sentindo a saudade
da terra morena
do meu xapuri

°°°

roda de fogo


é, é no terreiro roda de fogo
que a viola faz o seu jogo
é no terreiro roda de fogo
que a viola quer pontear
e, e na dolência desse seu jogo
espalhando saudade na carusma
que risca o ar e o breu da noite
geme pra chamar um claro de lua
doida pra bordar seu fio de notas
nas pontas do luar

é, é no terreiro roda de fogo
que a viola perde o jogo
é no terreiro roda de fogo
que a viola põe-se a chorar
só, só a fogueira joga seu jogo
porque a lua não sai pra jogar

°°°


desvario de viver


é artimanha, amiga
buscar na lembrança
de outros amores
refúgio para esse desamor

é artifício, amiga
saber diferenciável
sozinho
absolutamente único
e pertencer, amiga
apenas à saudade
que lateja em mim

é desejo, amiga
que o meu corpo
com a emoção que nele habita
possa continuar produzindo
acumulando
e gastando energia
no desvario de viver
tão distante
do que se quis ter

°°°


dentro de você


dentro de você corre um rio
mora um pássaro, tem uma canção
lá bem dentro a semente
seu pedaço na paixão
apronta os passos de viver
qual castelo de estrelas
sobre as pedras do seu reino
deixarás para ele ver?
qual canção que tens por dentro
deixarás nele cantar?
e que rio legarás?
quando a sede ele beber

quem tem dentro seu pedaço
tem um rio, tem um pássaro
convivendo no espaço
com o fio, com os laços
que amarram as canções

°°°


alma que ama


por não te conhecer tanto
és perfeita dentro de mim,
assim, idealizo, sonho
e sofro a tua ausência

alma que me ama
minha alma também te ama
mas está, ainda, aprisionada
no meu corpo
que todos os dias sente saudades
do teu corpo e da tua alma

alma que me ama
prisioneira como a minha,
vivendo a ilusão de ser só alma,
num corpo que não conheço tanto
mas que é perfeito dentro de mim

alma que me ama
num dia nem vestígios
do meu corpo haverá
um dia quando só alma for,
no espaço infinito das almas,
ainda, doerá a lembrança
de tê-la tido, sem tê-la
de tê-la esquecido, sem esquecê-la

°°°


cicatriz


tantas marcas
mas sobra lugar
para colocar a tua

no começo será chaga
doerá
provocara comoções
de absoluta dor

mas com o tempo
este natural remédio
te terei na lembrança
serás cicatriz

°°°


lucidez


a escuridão retalha as ruas
e duas esquinas disputam
quem copula a cadela

o vício da miséria
fere narinas
entorpece dentro
e disputa
com o cheiro que cola
noite a noite
como brincar

o vício da miséria
sacia as trevas
mas quer sempre mais
e vai inventando
variações
para sua droga podre

troca sangue
por sangue
qualquer dono
qualquer dano
qualquer ramo
reinventado
em nova droga

bairros inteiros
espalhados
pela noite
engolindo
sujas de miséria
as cidades
que dormem o dia

a lucidez insone
dispara o canto
me liberta e me prende
em todos os ângulos
que formam os vãos


°°°


procura


procurava pela cidade socorro
em alguma outra metade
e só encontrava partes
quantas vezes a estridência dos gritos
desesperados ecoava
da minha janela até a escadinha do cais
quantas vezes gritei socorro
nas cores
n’alguma rima
ou pelos bares
alento de ombros amigos
às vezes me calaram
quando a voz roucamente
só podia sussurrar socorro
não soube te pedir para ficar
o encontro foi breve
marcou novamente a vida
intensa vida
que cabe até em momentos
repetindo simétricas
esperas
até quando da janela
e aí
já enlouquecido pelo tempo
gritar de novo
socorro

°°°


guardados


por entre os campos
da minha alma
o afeto semeei

em coivaras
pequenos gestos
guardei
para a intenção
muda
nas palavras
envelhecendo
no alforje
das minhas perdas
silenciosamente

°°°


chapada do são marcos


chapada do são marcos
bera do ri do braço
vai vem é afruente
entre águas
entre rios
meio de cerrado
onde avoa codorna
e ispanto perdiz nos passo

na porta da casa
bambuzá parceiro de vento cantadô
na porta da casa tamém
um pau frondoso
que cumula sombra nos embaxo
as foia sôrta antes da frorada
e arcochoa a sombra
pr’eu deitá cum meu amô
se cai fror durmida
nóis panha e se prefuma
se cai diurna
nóis se farta de cheiro que nem beija-fror

teno tropa prá tocá
nóis vai no passo manso
mode num cansá animá
mode tê paga boa
corda cedo
dia sem raiá
móia os pé no sereno
prá animá incontrá
no pasto pequeno
nóis campeia eles
traiz, arreia e vai gado buscá
istimosa, paridera, esperança, lambari ...

às veiz nóis passa no vau
céu vermeio parino o sol
merenda já tá cherano
o corpo recrama sustança
nóis tira o leite
aparta o gado
e atende o corpo cum zelo

pur pricisão às veiz
nóis mata um capado já chei de ingorda
aí é festança
nóis sangra ele antes da lida do gado
mode as muié aprepará
a limpança, o discarne, o retaio
fazê a lingüiçada e as armôndega

se truveja nas cabicera do Braço
nóis fica preparado
água do ri vai lambê as berada
e favorecê a distoca
aí, é o imborná de paçoca
a cabaça d’água e o invergá do corpo no eito

nos ôi de inxada cumulado na vida
o atestado de labuta
coisa que os calo das mão
num faiz pur sê só dois
o da firmeza e o da repuxa

adipois da lida
no terrero, em vorta do lume
cum as istrela recamada no céu
a cheia fazeno crarão
os vaga-lume riscano o negror da noite
na guardança da terra

nos calo da mão
o cantadô recebe a viola
e na quietude
canta sua dismidida querença

ah sertão do são marcos
divisórias águas do braço da minha vida
num achei a sabedoria de ficá
e me perdi nos caminho de vortá

°°°


uirapuru


breve realejo
na manhã de ninho
quando acorda
diverso e único
silencia a mata
e as gotas de orvalho

raro dia
nos raios de sol
e arredores
entrelaçando silêncios
em seu canto
de vário labor

canta um dia
na janela
faz seu ninho
no quintal
ensina minha viola
outro jeito de cantar

°°°


são gonzaga
para luiz gonzaga


em qualquer pé de serra
que se encontre o sertão
nenhum fole fala baixo
nenhum fole cala não
quando prega conselheiro
quando reza são rumão
quando canta cangaceiro
congregando lampião
em qualquer pé de serra
que se encontre o sertão
há, de sempre, um vaqueiro
honrando o seu gibão
aboiar o ano inteiro
em gestos de contrição
pregando por conselheiro
rezando por são rumão
em qualquer pé de serra
que se encontre o sertão
com chapéu de cangaceiro
seguindo são lampião
há, de sempre, sem receio
o povo juntar inteiro
e lutar pelo seu chão
escuta o aboio do sertão rezando
escuta o fole cantando no pé de serra
tudo isso dentro dele
tudo isso cantou nele
tudo isso era ele
ensinando meu irmão

°°°


lua
para celso viáfora


a lua espia
por entre
os edifícios
na noite fria
da grande cidade
olhando
por frestas
perplexa
o que sentimos
despudorada enfia
seu punhal de luar
no desencontro
desse encontro
e faz sangrar
o desvario
de luz
do nosso olhar
teimosa
a lua nos espia
na noite de
todo lugar com
seu punhal no ar

°°°


sem cores


não há mais cores
nas minhas mãos
somente cinzas, tons tristes
de todas as cores

cinzas no corpo
alimentado só de solidão

as palavras fogem de mim
circunspectas e caladas
como se repetissem
sem os verbos
as mesmas rimas

o violão rejeita solene
as intenções de canção
no silêncio rodeado
de dós e si bemóis

quanto tempo passou?
algum vento passou?

estou imóvel
sem versos, calando
como as cores no cinza
dentro, preto e branco,
sem versos, esperando
de cor, uma cor
nascer nas mãos

°°°


canção do amigo
para henrique pereira alves


irmão que não tive

salvamos o passarinho, foi um sanhaço
alembra o dia
nada dentro está esquecido
a simplicidade, é isso que nos emociona
pequenas lições percebidas a tempo
éramos felizes na beira dos córregos da nossa juventude, e percebemos hoje, quando estamos também felizes, para saber só amanhã

almas atemporais

na calçada da frente, estava apenas a um quarteirão adiante, mas eram paralelas as calçadas, trilhos nas ruas das nossas pequenas cidades
pequenos pecados na calada da noite, almas envolvidas desde então

atemporais

homem do terror, existe não
te gritava, uma esquina na frente
os amigos que não ficaram senão nas lembranças, no coração
não nos deixaram, não os deixamos
alembro, você não tinha nem nascido ainda
eu já te puxava pela mão, na subida da ladeira do vai-vem
íamos encomendar um pião de goiabeira a mestre pila
também de você sentado na calçada, de madrugada, me esperando na porta da cobra verde

alembra

seu primeiro dia de trabalho com joaquim pirracento, fazendo carroça
eu estava lá

alembro

na são lourenço, ensinaram
pede uma cerveja, escolhe a qual você quer e convida para tomar um copo
quando ela beber o primeiro gole, convide para terminar a cerveja no quarto
lá dentro combine o preço antes, e o resto é com ela
foi rapidinho, você pareceu galo, disseram
me alembro, ela se chamava maristela, era bonita, só um pouco envelhecida

irmão que não tive

almas encantadas, atemporais.
encontro marcado, o menino correu, o moço encurtou os passos
calçadas, trilhos nas ruas duma cidade, achamos nosso norte
aprendemos neste encontro marcado que o tempo nas nossas vidas está é dentro de nós, atemporal
um dia, na velhice final, sentados num banco de jardim da praça da liberdade na sua ou na minha cidade te direi...

irmão que tive

°°°


farsa da palavra


farsa da palavra
nas bocas
sem a emoção
da verdade
farpa da palavra
pregando minha
miséria inventada
locupletando
em beijos no chão
ou a prestação
farsa da palavra
de mão em mão
atos falsos
da palavra em vão
intenções falsas
da palavra em vão
tentando dispor
complacente
de quem sou

°°°


injusto se há


foi num lampejo de
angústia que deus,
injusto,
se há,
nos formou um ser só,
deu solitário limite
na enorme ternura
em outro lampejo
permitiu, ainda,
a chama acesa
injusto,
se há,
reluta severo
em de verdade nos criar
embaralha o tempo
na dor que
recende dos nossos corpos
e num gesto de
generosidade
nos dá referências,
pessoas amadas
e nega,
na sua angústia,
que fossem
para nós dois as mesmas
se há,
injusto que é,
quem sabe num dia
de muita melancolia
nos permita alma
e carne se pertencer
se tarde for,
injusto,
se há
permitirá
nos contentarmos
com a lembrança
do que nunca fomos

°°°


renda branca


por entre as folhas
a renda branca
veste o mormaço
que o húmus transpira
na terra que bruscamente
chega ao mar
e o mar sereno que seduz as praias
em véu de espuma se instila
cobrindo o braço de terra
que tenta abraçar
respingando a água salgada
na renda branca
que a aranha negra
fez pra morar
indignada levando
o novelo no ventre
vai tecer sua casa longe do mar

neste exato momento
o computador recebe
a fotografia que o satélite
tirou do lugar
encoberto de nuvens
como a renda branca
que a aranha negra
leva no ventre
para tecer no ar
momento dos seres vivendo
o tempo no instante que o instante
se equilibra na harmonia
daquele lugar

°°°


vazabarris


canto-te inselenças, benditos e ladainhas
invergadas sementes na ponta dos sabres
das tropas juntadas
vaza o que guardas
vazabarris, vazabarris
reúne o conselho
quilimérios, antônios, calutas e santos
vaza a história
descobre barris
sementes que enterras, ruínas que escondes
entre peixes e cantos
vaza o que guardas, junta barris
com o choro da terra
o ontem quimeras
com que hoje enterras
vaza o que guardas
vazabarris, vazabarris
inselença de silêncios
no manto dos montes
inselença de silêncios
no manto dos montes
não esquece brasil, vazabarris

°°°


prisioneiro


quisera roubar-te a beleza
para cantá-la em minha poesia
como um ladrão comum
levá-la por entre os versos
nas estradas do meu corpo
suavemente...
depois me deixar aprisionar
pelos teus braços
agora já encarcerado
que os teus olhos cuidem os meus
que não escape um só olhar
como a cobra e sua presa
obedecerei sem relutância
todos os teus gestos
mas por favor não se apresse
qual sol quando passeia no dia
me torturas com tua pele macia
mas torturas lentamente...
e nunca me negues, te peço
o ensejo de liberdade
no instante do teu beijo

°°°


meu poema


se não soarem como
simples palavras
harmonizadas na estética
mas ardendo
no universo
da minha procura
se soarem como
ferimentos da luta
entre a angústia
e o amor
conterá o poema
vestígios da minha alma
em casca e dor

°°°


pedindo


mergulhar profundamente
nos teus olhos
procurar-me em teu corpo
num desejo latente
de me ter
somente através dele
e poder te dizer
pedindo
depois eu quero mais

depois do teu corpo


depois do teu corpo
nem banho
para que o teu cheiro
repouse em minha pele
e me deixe
pelo menos por um dos sentidos
ainda te ter

°°°


virgindade do miguel
para miguel de curitiba


nossa inocência oferecida
em volta das casas que dormem
na adolescência da cidade
nossos lábios ansiosos por seios
nosso sexo em calor
latejando
na posição de voar
nossa inocência
entregue à sabedoria
do corpo mutilado
de ritinha do buraco
alma vendida por tostões
meninos empurrados
homens em tentativa
na alma mutilada de
ritinha do buraco
no corpo em negócios
de ritinha do buraco
inocência de todos nós vencida
menos a do miguel de curitiba

°°°


zaldivar
para otávio zaldivar arantes


na solidão
do sonho
o tijolo
a cena
implodiu
na rua

monólogo
perdido
de solidão
diálogo
esquecido
nos sonhos

tijolos
inacabados

cena
apagada
no espetáculo
de sonhar

°°°


divisão


somos partes
pejadas de amor
que não partem
inteiras quando
tudo acaba
partem menores
que a metade
de nós dois

maiores antes
menores depois

°°°


seu olhar


olhos de orvalho
proficiência do pranto
que vestindo o olhar
pode tirar
lágrima por lágrima
de todo instante
e se desnudar
ou pode conter
sem denunciar
qualquer emoção
que forma um olhar

°°°


lembrando eurídice
para vinicius de moraes


são de solidão
os versos no violão
que fiz, lembrando
só nós dois
contam nossa paixão
na canção que a lua
nua segue lá do céu
nossa história calando
a madrugada
eras tão minha
e eu só teu
quando a dor
me enlaçou
mas meu amor não morreu
vive
vagando nas noites
que o luar abraça
acompanhando
esta canção

°°°


dorir


é dolorido e definitivo
o inexorável tempo
passando pelo corpo
alquebrando os gestos

dor vindo...
e indo...
indo...

construindo dentro
um jeito de amar
doído e definitivo
misturando ao corpo
a agonia do instante
e a alma em esperança

fim vindo...
e indo...
indo...

°°°


consciência


cá estou
serenizado em minha
solidão
hoje sei quem sou
percebo
componho
sou parte
recrio
assumo
sou todo

°°°


sinfonia triste


a tristeza
escorria no olhar
não escutavas
nada ao teu redor

a sinfonia do entardecer
deslumbrava
colorida
a tristeza
escorria dos ouvidos
não vias
nada ao teu redor

a tristeza continha
teu corpo
para não escorrer
pelo chão
como lágrimas

°°°


espelho dos teus olhos


sou único
refletido em ti
me descobri
foi a luz dos teus olhos
que iluminou minha poesia
e a fez brotar em mim
como forma de aceitar
esta saudade latente
de tudo que já amei
de tudo que já perdi

°°°


legado
para marco antonio quinan


deixo-vos no branco dos cabelos
todas as tentativas
nas rugas da pele
as marcas dos erros e acertos
deixo-vos canções
coisas escritas
parcerias
sensibilidades
deixo-vos irmãos
e a referência da terra amada
deixo-vos a semente da morte
plantada na carne
melancólico legado de homem comum

°°°


cumo carta
para cléa e henrique pereira alves

arreceba cumo carta cum nutiça e perguntação
na farta dum pusitivo prá levá minhas tenção
envai miúda toada, mas sincera de peão

do oro que te separo apenas de um tostão
mandei fazê uma medaia, prendida tá no gibão
pra lembrá sempre do amigo nas hora de pricisão

cumo vai a moça frôr, da ciença a mais bela
desse oro num separe, avulie as intenção
na passada pelo mundo num tem outro meu irmão

a pequena envai bem, só um pouco istrupiada
uma gripe intermitente, amontada e bem danada

se ôce tá cum sodade, apruveita a fidarguia
a durmida tá rumada, a sarjeta já varrida
a escova tá no pote, o pote já tá na pia

paguei tudo os cobradô, sua ficha tá limpinha
pode comprar de um tudo, nesta praça e nas vizinha

rabo de galo estocado, isso é pura fidarguia
a durmida tá rumada, as quenga tirei da fila

tudo pronto prá fulia, é só manda o aviso
preu juntá os cumpanheiros e fazê a canturia

sobre oro meu amigo, aceite orientação
o fácil vale tão pouco, as veis só um tostão
aproveite a juventude, garimpe no coração

recebemo o aviso do robo da moça frôr
adisculpe nóis num i prá fazê a guarnição
nus de longe tamo perto, mandando nossa benção

o oro que te separo apenas de um tostão
fais parte dos meus guardados
pra lembrá sempre do irmão

°°°


luzes na escuridão


enlevados seres
que tocando
o estandarte do amor
perceberam a vida
e se comprometeram

viram a aurora
escutaram as vozes
nos caminhos
e compreenderam os sinais

sentiram o gosto do orvalho
e fizeram da intuição
o jeito de andar juntos

souberam se amar
na luz e na sombra
que nascem da escuridão

souberam se amar
também na escuridão
que contém, na ausência,
luz e sombras

enlevados seres
cantando o silêncio
e calando as águas
da lápide do cocorobó

°°°


encontro


o que a noite revelará real
no fio da madrugada?

desenrolando o novelo
de nossas mágoas
histórias de amor, comuns
no frio da madrugada
amá-lo, mas não querê-lo
nas noites de quase nada

histórias de amor, comuns
no frio da madrugada
amá-la, tanto querê-la
na vida desencontrada

o que a noite revelará real
no fio da madrugada?
vestígios de nossas mágoas
no rasto de uma carícia?
ou nossos amores guardados
se entregado em lenitivo
no fio de quase nada

°°°


senzala no canecão
rj - 06/10/99 20:30
para joãozinho gomes



solta sua voz de floresta e rio
nas palavras que fogem
das suas mãos
para o marabaixo
dos tambores daqui
mostra em couro e cor
a batida do seu coração
e porque ele bate aqui
mostra os meninos irmãos
pontos de luz
que não se amedrontam
com o mar abaixo
das montanhas daí
solta sua voz de leito e margem
nas rimas que fogem da sua boca
mostra a todos sorrindo
as estrelas do cruzeiro norte
luzindo a verdade daqui
solta sua voz de semente e verde
nas cores daí
balança as cadeiras de couro
e deixa verem o cordão equador
que segura as vestes de versos
que leva daqui
solta sua voz de afluentes e lendas
nos verbos que é honra dos gomes
e dos brasis

e eu na platéia como lhe disse
aplaudo daqui

°°°


alforriada


o conceito científico
reuniu seus homens
pálidos e densos
o conselho ecológico
reuniu os homens
que enxergam amanhãs
o congresso ecumênico
reuniu em orações
e meditações, seus próceres
os filósofos apresentaram
suas profundezas
os governos se reuniram
em tratados, vaidade e propinas
estudaram e concordaram
preservar para o futuro
para próximas gerações
escravizando em grilhões
de tanta sabedoria
a floresta viva
que minha ignorância
convive
que minha ignorância
calada ama
que minha ignorância
alforriada, convive
calada e ama

°°°


tanto mais


queria te dar a aurora
se despindo na manhã
e orvalhar os caminhos
dos teus gestos pelo dia,

queria te dar momentos
que jamais tivemos
e todos os sonhos
que ainda não sonhei,

queria te dar mais,
tanto mais,
nas palavras usadas
em desbotadas metáforas,

queria te dar muito mais
do meu amor
que não envelhece,
mesmo esperando
só dentro de mim

°°°


noite suja
para plínio marcos


na cidade grande e perdida
uma procissão se forma
inesperadamente e conduz
um corpo proibido
procissão de esfarrapados,
almas noturnas e prisioneiras,
vestindo suas maltrapilhas vidas
conduzindo pela noite suja
a palavra que corta
como navalha
carne de anjo maldito
em procissão
de bar em bar
de mão em mão
pelas noites surdas
e esquartejadas
cena grávida
de solidão e medo
carne de anjo
maldito e marginal
restando insepulta
pelos palcos do brasil
grande e perdido

°°°


juras na madrugada
para eudes fraga


espalhei meu olhar
estavas tão perto
mas fingiste que não

procurei o teu rosto
que a multidão escondia
me disseste que sim

e foram tantos passos
pelas calçadas e ruas
até o trinco do teu portão

nossas mãos
enlaçadas
laçaram o luar
e nos expomos,
e nos amamos

juras possíveis
na madrugada
silenciosa
disseste sempre

°°°


tu


na distinção
do teu porte
na ternura
das tuas mãos
no lirismo
da tua voz
na segurança
dos teus gestos
na certeza
do teu amor
em silêncio
na fraqueza
da tua indiferença
em segredos
a posse fatal
da minha sensibilidade

°°°


bem-vinda


sê bem-vinda,
amada minha,
inesperada
mas bem-vinda,
amada minha

não te preparei versos e luares,
nem os braços
em abraços,
amada minha
mas sê muito bem-vinda,
amada minha,

seguiste os vaga-lumes,
não foi? amada minha

te pedia para voltar
depois de cada entardecer,
amada minha,
no piscar de cada estrela,
amada minha,

pedia aos vaga-lumes
que as imitassem sem parar
até te encontrar,
amada minha

°°°


tola


nos mares que nos separam
águas de desconfiança
ondas de possessividade
jogam nossos navios nas pontas afiadas
dos recifes da indiferença

tola és
pensas que a noite não pode ser boa
sem “boa noite”
que não me embriago com a bebida
que não sei pescar
que sorrateiro deve ser só o amor

tola és
não há águas, ondas ou mares
desconfianças, possessividades ou indiferenças
cumprimentos, bebidas ou iscas
que apaguem qualquer dos nossos momentos de amor

°°°


paixão perdida


perdi todos os teus olhares
perdeste os meus
perdi na ausência da tua voz
risos e harmonias
também perdeste da minha
tantas histórias e rimas
nossas bocas nos mostraram
quanta paixão se perdeu
nos merecíamos tanto
e não soubemos nos ter
nossa história de amor
desde o maço de flores do campo
até quatro mil
quatrocentos
e setenta e cinco dias
ao entardecer
não direi mais o que perdeste
mas eu sei o que perdi
e aceito a saudade
pois foi dela que vivi

°°°


inexorável tempo


não deixes que o tempo passe
desta maneira dentro de ti
os teus olhos já só me enxergam
na média distância
e os meus a ti também
nos emocionamos com o atemporal
do nosso amor
as lágrimas contidas
nos meus, nos teus olhos
marcando o inexorável tempo
que não nos demos
se de joelhos nos prostramos
um aos pés do outro
na penitência de não nos termos
serão nossos olhos
que já não se vêem de perto
o sinal de que
deixamos nossos corpos
não se pertencer
na atitude menos ousada
que poderia ainda
nos deixar desse amor viver

°°°


posse


amo cada parte do teu corpo
com olhar discreto (às vezes)
olho cada uma
com desvairamento e gula
e mesmo de longe
o tenho com a posse
da minha imaginação

°°°


lágrima negra
para zé keti


a multidão vê
quando o arlequim
segue as estrelas

o surdo em lamento
marca cada lágrima
que cai dos olhares

do céu de cetim
chove confete
e serpentina

a colombina acena
um derradeiro adeus
e com seu pranto
derrete a máscara negra
que escondeu seu rosto
em todos os carnavais

°°°


instante


o instante como lúcida chama
perseverou o calor
que ensaiamos tantas vezes
no silêncio dos gestos
anelos esparramados
na nudez
do que sentimos
contando o tempo
da espera
que a mágica do instante
não espera

o instante como lúcida chama
queimou com suavidade
nossos corpos
vestidos de volúpia
minhas mãos
beijaram teu corpo
minha boca
comeu a tua
e meus olhos
te lamberam a pele
com cheiro de aurora
estavas nua
quando a chama lúdica
estremeceu vadia
na ponta do olhar
e me lambeu também

o teu corpo disse sim
tua boca comeu a minha
sentimos o suave orvalho
por entre as roupas
e a lucidez do instante
desprendendo do tempo
nos colorindo de chamas

°°°


piedade
para piedade e rubens almeida


requebrou
a poesia dos gestos
e a noite chorou

declamou
seu corpo de rimas
e o poeta calou

quando fecharam as cortinas
eu vi piedade no devaneio
das suas mãos
pisando luar
e foi tanta beleza andando
o caminho
que até os meus versos
vieram olhar

°°°


curva do tempo


molha os pés
e as mãos
em calos
nas águas
da infância,

rio ponte,
rio pedra,
rio fonte,

caminho perdido
na curva do tempo
rio indo, ardendo
queimando paixões
rio ido
angustiado
em ser
rio velho,
jazindo,
indo, indo...

rio pedra,
rio ponte,
rio fonte,
indo...
indo...

°°°


vale a pena


vale a pena
viver no tempo
de esperar tua voz
e quando ouvi-la
imaginar teus olhos
o contorno da tua boca
em sorrisos
sonhar com teu corpo
que é tanto meu
viver no tempo
nomeando formas
de ti emoldurar
na minha saudade
depois de cada chuva
ao ouvir os pirilampos
no entardecer
ao recamar das estrelas
ou no clarear das manhãs
quando ao norte
ou a oeste
meu pensamento estiver

°°°


conversa de pescador
para sebastião tapajós


onde as águas se encontram
integrando as entranhas
de todas as margens de lá
vive um ser feito de barro
soprado por sete luzes
pescando sons e luar
que espalha pelo mundo
nas margens de todo lugar
misturando em sete cores
suas linhas de pescar
iscando uma por uma
sonha e faz sonhar

isca um dó
e pega a dourada

com um ré
pesca rebeca

isca um mi ou um fá
pra pegar mira-céu
e facão

isca um sol
escapa a solha

isca um lá
e é tanto lalau
que resolve com o si
pegar siri

histórias de pescador
cantando por aí
nas margens de todo lugar

°°°


lamento
para joão curiaú


já te foste nas asas do vento
nos cheiros dos matos
mas me alimentas ainda
com a tua lucidez
te escrevo como um lamento
não tenho a quem amigo
a ternura é muito forte
sabes disso
hoje um dia qualquer
já me tiraram coisas
já me entreguei a pessoas
sempre virá alguém
amo uma mulher clara como o dia
a quem a emoção não chega
plena como está em mim
mas isso não importa
de feitor só tenho a solidão
que se confunde muito com
uma companheira
qual a semente da morte
que está em mim

°°°


noite e dia
para murilo fonseca


você o vento da noite
eu o vento do dia
ao amanhecer
juntos nos canaviais
beber na fonte
rodopiar por aí
percorrer os matos
você lembrando seu amor
eu o meu
roubar o aroma
das plantações de fumo
fazer ondas nas águas
assobiar por aí
ao entardecer
sentir saudades
virar brisa
e cantar baixinho
você lembrando seu amor
eu o meu...

°°°


sonho cabano


paneja a bandeira, cabano
exorta bravura da luta
trazendo lingada de sonhos
em laivos de terra nova

noutrora laço tisnado
traição coragem refuta
lobrigando os aleivosos
vendendo nonada conduta

oblitera dias de dono
o sumário das balas
canhão que um corpo cala
no vintismo conforme

dobra as duzentas
e cinqüenta e seis
bandeiras, cabano
no túmulo de cal

sesmarias sementeiras
das rústicas sementes
libertas do desterro

drogas do sertão
ódios de porão
corrente opressora
aduzindo alvitre

alarvia em sonhos
algarviada cabana
panejando a vontade
de liberdade sem tomo

°°°


iguais


ainda somos
as pessoas que ardem
e se esvaem
em procuras,
tecendo em sonhos,
encontros e despedidas,
a solidão de nossas
pequenas histórias

°°°


caipira e severino
para joão cabral de melo neto e xavantinho


no curto espaço
que a viola calou
e calou a palavra
um silêncio impertinente
cantou nas margens
do uberabinha

um silêncio impaciente
gritou nas margens
do capiberibe
cerrado e caatinga
choraram sete notas
e palavras definitivas

dois rios perenes
correndo
em voz alta
por entre
calos, viola e vida

dois rios
correndo perenes
nas lágrimas
do nosso pranto
caipira e severino

°°°


amor definitivo


entrego
aos teus olhos
os meus em lágrimas,
nesse momento maior de amor,
te pertenço por inteiro
na lucidez
desse silêncio
com teu rosto rente ao meu
e minhas mãos
sem mágoa
te falo do meu
amor definitivo
na poesia
dessas lágrimas,
que teus olhos
também conhecem
plenitude
maior do amor,
instante
maior do amor
em cristais
no meu pensamento

°°°


natal
para marina quinan


a chama iluminava a mesa
ninguém nascia ali
mas nascia
a mulher sendo
caminho afora
o homem vendo
vivida a hora
a chama acesa
por entre os grãos
fecundava os momentos
que nasciam ali
mas não nasciam
resultavam

a chama que os olhos
da mulher e do homem
refletiam nas lágrimas
iluminavam a noite
e um dia de natal
que não nascia
mas nascia
na conversa
de pai e filha

°°°


esmaecida lembrança


parte arrancada,
distante,
dilacerada,
mas que lateja e arde
parte e universo
história esmaecida
nas lembranças,
levada na poeira das estrelas
tempo feitor
reunindo pedaços
dentro de nós
corpos já puídos pelo tempo,
asseverando o amor
dentro de nós
miríade do que já fomos,
mutilada,
que ainda sinto
por dentro de mim

°°°


breu da chibata


raça desvalida
que terra amou?
seu cheiro de guerra
em canto soou

vem de onde vem
acaso ou certeza
disfarça contando
encobre o sangue
dissimula rezando

diverso o gentio
cativo vagou
vermelho sangue
calando ficou

a pele escura
prisioneira chegou
o breu da chibata
a moeda pagou

o gume das facas
penetra em vão
onde tudo dá
natural e tão

°°°


noite
para chico sena


da própria noite
com intimidade sobrevivi
sedento
cansado
desprotegido
e convivi com minha loucura
busquei e estive
diluído em muitos
gestos de amor
que esparramei em tudo
que te rodeia
foi em vão
minhas mãos enlouquecidas
não te abraçaram
enternecida a razão
a loucura era irreal
a noite não

°°°

°°°


cruzeiro do norte


estão lá
sem simetria
nem ereto
nem deitado
o traço das estrelas
está nu
e crucifica o olhar
que na noite
quer o norte
são no quadrante
luminosos pontos
que entregam à noite
seus sinais
sem cruz
que ensina os caminhos
em gestos
de luz

°°°


colcha de angústia


retalhos de vida,
dispostos juntos,
são das cores alegria
e tristeza

retalhos juntos,
dispostos na vida,
formam as cores
da chegada
e da partida

retalhos dispostos,
na vida juntos,
cor da lembrança
e da saudade

retalhos de vida,
dispostos juntos,
na cor da labuta

tecendo a colcha de retalhos
com que cubro
minha angústia

°°°


não venha, não vá


levaria aconchego
nos braços apertando
apertado seu corpo
em delicada atenção
nosso momento de sonhar
rir das tempestades
e por instantes nos salvar
do tempo igual
que em igual se muda
levaria do horizonte
o sol nascendo
em minhas roupas
e os olhos prontos
para o seu olhar
dentro dos passos
de afinal chegar
limparia a poeira
das lonjuras de mim
mataria a saudade
enroscada sem fim
levaria meu cheiro
envolto na manhã
pra você cheirar
entre um beijo e outro
do tempo em migalhas
que podemos nos dar

mas vem dita a palavra
como mãos vazias
o instante está
não venha, não vá

°°°


riqueza pobre


natureza em labor
espalha rios, florestas
em entrelaço

vidas, entranhas
de espanto altivo
em servidão
conhecendo
a riqueza pobre
de lâminas
e arengas

braços aprisionados
em qualquer valia
desordenando raças
espalhando
a riqueza podre
nas despensas abastadas
dos brasões reluzentes
de feras que rezam

°°°


pausa


do eito
onde capino o dia,
confiro meu verso,
pari o poeta

°°°


na gafieira


rés ao chão, no compasso
mesmo tempo, risco e laço
na ginga jogada no salão
presumindo presa fácil
no meio da multidão

a morena requebrando
sente o visgo, fogo arde
num olhar encandeado, armadilha
que o moreno jogou

cada passo ressoando
na cadência do desejo
fez no outro um acorde

é inveja que lampeja
no aço da navalha
seu brilho de desolação

quando o ciúme acha a rima
no sangue que ficou no chão

°°°


canto de bom entôo
para joão guimarães rosa


no rumo que o vento venta
em canto de bom entôo
o dia nascendo claro
nas patas, um quase vôo

cavalo aponta as ventas
cascos caminho cravo
roca, rangendo tempo
cascos caminho cravo

distância afia a pressa
anseio que abençôo
de longe vou rompendo
na saudade que remôo

sustendo o afogueio
no destino que dôo
roca, rangendo tempo
cascos caminho cravo

estalo de tira fraca
rompe léguas, desacorçôo
tramela abrindo a porta
em volta faz bom ressôo

amor, sina tirana
em canto de bom entôo
roca, rangendo tempo
cascos caminho cravo

°°°


insubmissa


sou a mulher
que finda, ereta
e insubmissa,
a última etapa da vida

sou a mulher
que chora,
pelos cantos,
escondida,
o tempo que só
dentro de mim ficou

sou a mulher
que carrega no ventre
o fim latejando,
minha primeira gravidez
e meu derradeiro parto

sou a mulher
ereta e insubmissa,
que desde nascida
finda

°°°


guardança


de pura guardança e apego
fica para quem continuar na lida
estas cantigas choradas que embalaram
minha labuta, meu cotidiano
a saudade engolindo tempo
as lembranças encurtando vida
de pura lembrança e apego
fica para quem continuar na lida
estas cantigas choradas
com todos os companheiros
os de labuta, os de sereno
o meu amor
parentes tantos
pais, filhos e irmãos que valem mais que ouro
e os parceiros de cantação, de fervor
e os de sonhos

por fim e só por apego
me enterrem no sertão do são marcos
em cova rasa
com a mesma saudade que sinto
por todos em vida
por apego...

°°°